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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

o trio logia

o trio logia

Davi Caires      

salvador, quarta-feira de cinzas, 2013.



na pipoca, atrás do trio de armandinho, depois de uma sequência machucadora que começou com chame gente e terminou com o bolero de ravel, o broder ao lado, vendo a apoteose instaurada, reflete em voz alta:
- e tudo isso começou com o pau elétrico...
naquele momento, as fichas caíram. verdade. a porra iniciou quando ligaram o pau na energia. aí fudeu! a casseta ganhou força, ficou frenética. irônico ser um falo eletrizado o símbolo máximo do carnaval de salvador. irônico e lamentável. logo me veio a imagem de um godzila em forma de uma piroca gigante andando pela avenida, pisando nos carros, mijando em todo mundo, mijando na cidade toda, gozando na cara dos foliões. nessa hora de profunda reflexão e visões surrealistas, surge na minha frente uma garota vestida de índia, com um cocar de penas brancas e de calça suplex azul cintilante. ela me diz alguma coisa. não houve tempo para a réplica. logo atrás veio um cara gritando:


- ó o geeeeeeeeeeeeeeeloooo!!!
eu dou um passo ao lado, permito o cidadão passar para não ter uma testa quebrada por uma barra de gelo. procuro pela índia. sumiu. apenas algumas penas brancas no chão comprovaram aquela aparição. a essa altura, as piriguetes (três por cinco) afetam meu estômago, fermetam meu juízo e apertam minha bexiga. hora de fumar um baseado. olha para o lado, olha para o outro. está limpo! não avisto os PMs. acendo o beque, dou aquele trago e, quando olho para cima, vejo uma camera me filmando, em uma grande grua, a alguns palmos da minha face. 

- caralho, tô na band!! 


apago o flagrante. acendo um careta. o som cessa e de cima do trio, armandinho conversa com os apresentadores da tv. o papo é chato. começa o desespero. nunca deveriam parar a música de um trio. seu coração está saindo pela boca e de repente para tudo e começa uma resenha morna e institucional. seu corpo e mente não entendem a súbita falta da pulsação e aí sim você fica doido, muito doido. suando rios, se contorcendo na avenida, ouvindo os batimentos cardíacos a ressoar pelos típanos e quando você pensa que vai desfalecer ali mesmo, o microfone do apresentador falha, o bloco é forçado a continuar seu trajeto, armandinho arpeja um acorde menor qualquer, a garota do cocar ressurge ao meu lado e me oferece uma smirnof ice, a procissão continua e tudo parece voltar ao normal. apenas parece, porque nada é normal nesse carnaval.

em um camarote, babacas uniformizados bisbilhotam a emancipação daqueles que pulam na pipoca. o trio toca “ besta é tu” em homenagem a essas pessoas que, temerosas em se misturar com o povo, deixam de viver a folia de rua para comer temaki de crem cheese em salões refrigerados. a onda da massa já havia passado, a um tempo, quando me apresentaram uma aguinha, aparentemente inofensiva, com um gosto levemente amargo. dei dois goles e só depois me falaram que havia cristais da felicidade díluidos ali dentro. bebeu água? tá com sede? não. apenas comecei a derreter. quando bateu a onda, tive mais uma visão esquisofrênica. imaginei que o trio de armadinho era a pedra sagrada de meca sobre rodas e todos nós éramos islâmicos moderados da santa causa da loucura. aquele trio é a matriz, é a origem é a gala filosofal desse imensa contradição que é o carnaval. e estar ali, acompanhando a família real, me faz, independente da águinha misteriosa, me sentir feliz. e de repente sinto uma vontade de chorar. mas logo passou. novamente, o lapso da imaginação é interrompido para dar asas à contemplação do presente. gritaria na avenida. a pipoca abre espaço. diversos homens do corpo de bombeiro correm e carregam uma senhora em uma maca. busco uma posição para enxergar o acontecido e consigo ver a cara da senhora. ela está rindo e dando gargalhadas. o que teria havido? como alguém aparentemente feliz pode estar sendo considerado como enfermo? me pego mais uma vez questionando a realidade. os bombeiros passam, a pipoca se organiza e eu mais uma vez me perco da garota. sinto falta de um sal. percebo o cheiro de carne queimando. guiado pela fumaça, avisto ao longe um churrasquinho de gato. deixo a avenida, atravesso um oceano de gente, passo entre uma briga de mulheres, enfrento aperto, falta ar. consigo atravessar a barreira, chego no churrasquinho, como dois espetinhos e ainda volto para a pipoca com a boca suja de farofa. antes de retornar, porém, procurei um carro de marca boa para mijar na roda. ao meu lado, e atrás de um outro carro de marca mais modesta, três meninas mijavam na rua. o cheiro de uréia invadiu a ladeira e nossos mijos se juntaram e escorreram pelas vias e pelas veias, e formou uma grande poça bem perto da onde se localizava a barraquinha do churrasquinho de gato. talvez tenha sido por essa razão que a carne estava tão macia. de volta à avenida e com a boca ainda suja de farofa, e mais perdido do que cego em tiroteio, encontro um celular no chão. já havia duas mensagens perdidas. uma dizia que aquele era o celular de glória e a outra dizia que caso alguém encontrasse o aparelho, que se dirigisse ao camarote tal, que a glória estaria na porta. pedi ajuda a um carregador de isopor de cervejas que fez de tudo para me explicar aonde era o tal camarote. ele apontava para trás e gesticulava bastante. perguntei-lhe se queria o celular e ele negou alegando que aquele modelo não tinha bluetooth. o que fazer? não dava para voltar atrás em plena pipoca. é que nem a vida. a pipoca é que nem a vida: não há como voltar atrás. pensei nisso algumas vezes e antes que eu pudesse registrar essa metáfora e viajar nessas subjetividades, alguém meteu a mão no celular e o roubou de mim e da glória. e pela quinta vez, as minhas reflexões foram abrubtamente interrompidas. por que será que é tão difícil pensar no carnaval?
o trio para no final do circuito e armandinho finaliza o concerto andante com “zanzibar”. a garota do cocar aparece again, pega de surpresa na minha mão e a gente canta junto: “ az de maracatu/ ali meu coração/ zumbiu no gozo dela/ ai, mina, aperta a minha mão/ alah, meu only you/ no azul da estrela”. acaba a música. e um longo beijo é sacramentado. finda-se a pipoca e o formigueiro se dispersa. uns sentam exaustos no chão, outros se abraçam, alguns voltam para a avenida, outros preferem comer yakisoba, sabor ajinomoto. convido a índia da calça cintilante para minha casa. vamos ao receptivo do carnaval atrás de dois moto-taxis. chegando lá procuro por moto-taxistas cujas camisas estivessem escritas a frase “ jesus é fiel”. me disseram que esses eram os melhores e mais seguros. não sou admirador de evengélicos mas naquela hora, naquelas circunstâncias me pareceu sensato voltar para casa na garupa de um crente. achamos dois: um com a frase “ jesus é fiel” e o outro “100% jesus”. pongamos nas referidas motos e aleluia irmãos. aos poucos as luzes e o barulho da folia ficaram para trás. a orla estava silenciosa. a madrugada despontava no horizonte. e em poucos segundos adentramos um novo universo. de dentro do capacete ecoava uma canção de caetano: “ e ainda a madrugada/nos saudou na estrada/que ficou toda/dourada e azul” ali, talvez por já ter me distanciado do epicêntro, pude refletir com mais sossego, sem a intromissão dos acasos momescos. nesse carnaval fiz uma peregrinação por algumas das pipocas mais emblemáticas desse ano. sai atrás de seis trios elétricos. não vi uma briga séria, um episódio triste, um roubo (o furto do celular de glória faz parte de trechos ficcionais desse relato), uma ação de violência contra as mulheres; não vi um PM abusando da autoridade; em nenhum momento me sentir apertado ou espremido nas pipocas. muito pelo contrário. não sei se tive sorte mais vivi momentos bem interessantes nesse carnaval de 2013. um salve geral ao baiana system, que são os decentendes mais autênticos, promissores e futuristas de dodô e osmar. moraes é moraes. o maior letrista e melodista do carnaval de salvador. com essa trinca de ás (arrmandinho/baiana/ e moraes) posso dizer que o meu carnaval foi originalmente incrível. existe ainda uma porção de coisas negativas sobre o carnaval. como disse antes, pensar durante o período do carnaval é uma tarefa árdua, então optei em usar o meu crédito-reflexão para pensar sobre as coisas legais. quando o carnaval se diluir na minha cabeça, eu reflito sobre o lado podre dessa festa.

meio dia do outro dia, acordo ainda anestesiado pela noite. o quarto exala um cheiro doce e na boca um gosto amargo. procuro pela índia de cocar e calça azul que havia dormido comigo. ela não estava lá. levanto da cama e percebo milhares de penas vermelhas espalhadas pelo quarto. não teriam sido brancas as penas do cocar da índia? qual teria sido seu nome? maria aparecida? maria de lurdes ?carmesita,? salete ou andréia? claro, claro. sabia que ainda estava faltando citar mais um mestre nesse relato. “amarradão na torre/ dar pra ir pro mundo inteiro, e onde quer que eu vá no mundo/ dá pra ver a minha torre/ é só balançar/ que a corda me leva de volta pra ela”

um salve a todos os foliões pipocas, aos verdadeiros trios independentes e às grandes paixões das nossas vidas.

e lembrem-se: o pau pode até ser elétrico, mas o triângulo é analógico.

cheguem com carinho.

salvador, quarta-feira de cinzas, 2013.

Davi Caires


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